quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Anita Garibaldi - A Heroína de Dois Mundos

Por Marcelo Cypriano  

De um navio de guerra, um italiano espreitava com uma luneta a cidade catarinense de Laguna, para fazer o reconhecimento. Ele pensava nos tantos companheiros perdidos, nas tantas agruras recentes, e nas lutas que ainda viriam. Sua tropa pretendia tomar o lugar com pretensões revolucionárias, contra o Império brasileiro. Mas o olhar de combatente rendeu-se a uma visão inesperada: pelas lentes de vidro, o estrangeiro viu um grupo de moças a passear. O rosto de uma das jovens o cativou de imediato. Antes de se dar conta de que estava preso ao que via, acompanhou-a o quanto pôde, até ela sumir de vista pelas ruas.

Tratou de desembarcar e foi até o lugar em que vira a moça, ainda sem entender direito o porquê de tanto fascínio. Procurou a jovem pelas redondezas, até que se viu obrigado a desistir.
Interagindo com os cidadãos locais simpáticos à causa pela qual lutava, recebeu de um deles o convite para um café em sua casa. Cansado da viagem e um pouco frustrado por não ter encontrado quem procurava, o combatente aceitou o convite. Uma boa bebida quente e uma conversa em um ambiente mais confortável aliviariam pelo menos um pouco seu desapontamento.

Assim que entrou na casa de quem lhe convidara, o estrangeiro deu de cara com quem menos esperava – ainda que esperasse mais do que tudo, sem o saber. Era justamente a garota que vira do navio.
Ambos ficaram simplesmente parados, em silêncio, entreolhando-se. O visitante quebrou o silêncio em italiano: “Tu deves ser minha”, falou, antes que ele mesmo se desse conta.

Seria apenas o incomum início de mais uma história de amor do século 19, não se chamasse o italiano Giuseppe Garibaldi, e não fosse a jovem Ana Maria, chamada Anita pelos entes queridos, uma das mulheres mais fortes e corajosas da história do Brasil e da Itália.


Revoluções

Ana Maria de Jesus Ribeiro nasceu em agosto de 1821 em Laguna, município da então província de Santa Catarina, filha de descendentes de açorianos. Anita, como foi apelidada, era a terceira filha do casal Ribeiro – depois dela, ainda viriam mais sete.

Anita perdeu o pai quando entrou na adolescência. Por insistência materna, casou-se aos 14 anos com um sapateiro, Manuel Duarte de Aguiar, para ser menos uma boca na família de origem. Tempos difíceis, decisões difíceis. O casamento arranjado durou apenas 3 anos, quando o marido se alistou no exército imperial e abandonou a esposa, que voltou para a casa da família.

Quando Ana tinha 18 anos foi que aconteceu a história acima, de Giuseppe, então com 32 anos, chegar a Laguna. Ele lutava ao lado dos revolucionários que fundaram a então recente (e breve) República Rio-Grandense, na província vizinha, e aportava em Santa Catarina para ajudar a fundar a República Juliana, a exemplo do Rio Grande do Sul.
 
A atração mútua foi intensa. Não tardou, e a personalidade forte de Anita pôde aflorar de vez. Passou a lutar a partir daquele ano mesmo com o amado Giuseppe contra o Império, pela libertação gaúcha, catarinense e de outros territórios.

Era outubro de 1839, e a lua-de-mel do casal foi bem diferente das normais. Acompanhando Giuseppe no Itaparica, imponente embarcação com sete canhões, Anita presenciou as agruras do combate quando a Marinha atacou a embarcação nas proximidades de Imbituba. Em novembro, participou ativamente da perigosa Batalha de Laguna, transportando munições em um pequeno barco em meio ao fogo cruzado. Vários combates depois, o casal passou o Natal em Lages, terra de parte da família Ribeiro.
Amor em meio à guerra

Em janeiro de 1840, ambos se separaram sem querer em meio ao calor da Batalha de Curitibanos, em Santa Catarina. Ela, que abastecia os soldados com munição, foi presa, e chegaram as notícias de que Giuseppe morrera em combate. Entretanto, a prisioneira mostrou pulso em meio à dor, causando a admiração do comandante imperial, que acabou por concordar que ela fosse procurar o cadáver do marido. Em meio ao cenário desolador, ela conseguiu um cavalo e fugiu. Foi para Vacaria, no Rio Grande do Sul, em uma viagem de 8 dias, pois lá estavam reunidos os revolucionários. Lá, reencontrou o esposo. Como ela pensava, Giuseppe estava vivo.

Após 8 meses, nasceu em Mostardas (RS) o primeiro filho do casal, Menotti. Apenas 12 dias depois, soldados imperiais cercaram a casa em que o casal Garibaldi estava. Anita fugiu a cavalo com o bebê e se escondeu numa mata nos arredores da cidade, onde Giuseppe a encontrou 4 dias depois.

Em 1841, o casal desligou-se do exército rio-grandense e mudou-se com o filho para Montevidéu, capital do Uruguai. A viagem foi difícil. Os Garibaldi receberam 900 cabeças de gado bovino para um recomeço de vida, com o qual seguiram em tropa para terras uruguaias. Chegaram ao destino somente cerca de 300 animais. Lá conseguiram, pela primeira vez, embora por curto período, ter algo parecido a uma vida normal. Casaram-se legalmente, e Giuseppe foi nomeado comandante da pequena esquadra do país. Nasceram mais três filhos, Rosa (1843), Teresa (1845) e Ricciotti (1847). Aos 2 anos, a pequena Rosa morreu por causa de uma infecção na garganta, o que causou grande sofrimento ao casal, mesmo já tão acostumado com a morte.

Em 1846, com os conflitos cada vez mais constantes, Giuseppe tentou enviar Anita e os filhos para viverem com sua mãe em Nice (então pertencente ao reino da Sardenha, que viria a compor a Itália, e hoje pertence à França). Contudo, a corte italiana negou-lhe o pedido. Após 2 anos, Anita e as crianças seguiram para Nice com outros legionários italianos, e ficaram com os Garibaldi.

As crianças ficaram com a avó, e novamente Anita retornou às viagens revolucionárias com o marido (1849). Participaram dos combates que culminaram na proclamação da República Romana, mas abandonaram Roma quando da invasão franco-austríaca à cidade. O casal seguiu com 3,9 mil soldados na fuga, perseguidos por 40 mil combatentes adversários, sendo que outros 15 mil os esperavam ao norte. Ainda assim, lutaram pela libertação da Itália.

Gravidez e fuga

Anita descobriu que estava grávida do quinto filho. A gestação estava sendo muito difícil, e ela não queria ser um peso para o marido. Insistiu a Giuseppe para ir a Nice passar o resto da gravidez, deixando-o mais despreocupado na guerra. Seu estado de saúde se agravou quando chegavam a San Marino, nos Apeninos. O embaixador dos Estados Unidos na Itália lhes ofereceu refúgio, mas eles não o aceitaram. Os soldados adversários eram milhões, e temiam a morte ou morrer na cadeia, separados.

Descobriram que Anita havia contraído a febre tifoide. Mesmo doente, continuava a fugir, com os austríacos em seu encalço. Muito debilitada pela doença, ela começou a dar sinais de que entrava em trabalho de parto.

Foi levada às pressas para uma fazenda perto de Ravenna, onde mãe e bebê não resistiram. Era 4 de agosto de 1849, e Anita faleceu com apenas 27 anos de idade.

O impacto sobre Giuseppe não foi pouco. Perdeu a grande companheira de sua vida, mãe de seus filhos, fiel parceira de combate, numa intensa história que começara 10 anos antes, quando a viu pela primeira vez sem querer, ao chegar a Santa Catarina.
Garibaldi teve de fugir, sem poder acompanhar o sepultamento da esposa. Exilou-se, e o corpo de Anita foi exumado cerca de sete vezes antes de poder ir para Nice. O exílio levou o guerrilheiro para lugares como a Suíça e os Estados Unidos. Ele viajou pelas Américas e quase lutou na Guerra da Secessão norte-americana. Mais tarde, ele voltou à Europa, e seria um dos maiores heróis da unificação da Itália, celebrado até hoje em vários pontos da Velha Bota – e no Sul do Brasil. Morreu em 1882, aos 74 anos. Mesmo tendo casado novamente, pessoas próximas testemunharam o grande impacto de Anita em toda a sua vida.
A Itália tem até hoje uma atitude muito respeitosa em relação a Anita Garibaldi. Seus restos mortais transferidos para Roma, e sobre seu túmulo foi erguido um grande monumento equestre, muito visitado por seus conterrâneos. Dois municípios catarinenses foram renomeados em sua homenagem: Anitápolis e Anita Garibaldi, e muitas cidades brasileiras têm praças e ruas com seu nome, que está inscrito no Livro dos Heróis da Pátria, no panteão da Liberdade e da democracia, em Brasília. Em Laguna, o Museu Anita Garibaldi reúne pertences e referências à vida da heroína.

Está previsto para 2012 o lançamento do filme ítalo-brasileiro Garibaldi in America, roteirizado e dirigido pelo italiano Alberto Rondalli, contando muito da história do valoroso casal.

Em suas memórias, relatadas ao escritor Alexandre Dumas (da famosa obra “Os Três Mosqueteiros”), Giuseppe Garibaldi relata aquele encontro inesperado em Laguna, ao aceitar ir à casa de um habitante local para um café, quando se viu frente a frente com a jovem que vira de longe, pelas lentes de uma  luneta rudimentar:

"Entramos, e a primeira pessoa que se aproximou era aquela cujo aspecto me tinha feito desembarcar. Era Anita! A mãe de meus filhos! A companhia de minha vida, na boa e na má fortuna. A mulher cuja coragem desejei tantas vezes. Ficamos ambos estáticos e silenciosos, olhando-se reciprocamente, como duas pessoas que não se vissem pela primeira vez e que buscam na aproximação alguma coisa como uma reminiscência. A saudei finalmente e lhe disse: 'Tu deves ser minha!'. Eu falava pouco o português, e articulei as provocantes palavras em italiano. Contudo fui magnético na minha insolência. Havia atado um nó, decretado uma sentença que somente a morte poderia desfazer. Eu tinha encontrado um tesouro proibido, mas um tesouro de grande valor.”

Monumento em homenagem a Anita, no Janículo em Roma. O escultor Rutelli retratou a fuga de Mostardas nesse monumento.

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